02 December 2013

Um Natal Português


Tem sido difícil imbuir-me do espírito natalício aqui nos antípodas. A família está longe, praticamente não vejo televisão nem entro em lojas... e não é Inverno. As imagens que vejo na internet de camisolas de lã e enfeites em encarnado e verde causam-me estranheza. Ainda não decorei a casa nem fiz um único presente. Uhm...

Quanto mais globalizados ficam os nossos imaginários e tradições (Pinterest?), mais me apetece procurar aquilo que é português. Claro que alguns dos elementos que caracterizam Portugal agora, ou até mesmo há 100 anos, provavelmente não existiriam há 300... longe de mim querer cristalizar uma determinada ideia de portugalidade. Mas acho que percebem aquilo a que me refiro... afinal, o que é um Natal português?

Numa troca de emails recente com a minha amiga Gracinha, fui presenteada com a versão dela de um Natal português. Gostei tanto do texto que não resisto a partilhá-lo convosco. 

Um Natal português
por Graça Almeida Borges


Um Natal português? O meu Natal é... Uma preparação cuidada e a várias mãos da árvore de Natal. As mais jeitosas ficam encarregues das luzes. A estrela nunca está verdadeiramente direita. O Natal são chocolates na árvore a aparecer e a desaparecer misteriosamente (continuamente – o meu Pai certifica-se de que há sempre chocolates na árvore), só um fiozinho dourado e um resto pequenino de papel prateado rasgado a denunciar os roubos sucessivos. É um presépio bonito, composto, elaborado, com socalcos feitos de caixas antigas do Marks & Spencer e da Loja das Meias forradas de papel de lustro verde (quando éramos miúdos íamos todos à Mata de Barão de São João buscar musgo para o presépio), com pastores e pastorinhas espalhados, algumas ovelhas (neste presépio não há cabrinhas...), o burro e a vaca, um poço, algumas casas, São José e a Virgem Maria no topo, os três Reis Magos a caminho e o Menino Jesus a chegar só mesmo à meia-noite do dia 25. São demasiados doces a chegar lá a casa – um tronco de chocolate que não se deixa tocar, uma tarte de amêndoa da viúva do Sr. Daniel, fatias douradas, sonhos, e outros tantos que, eu confesso, nunca chego a provar.

O Natal é uma confusão de gente a entrar na casa da cidade, uma canja de galinha com arroz que começa a ser feita sempre em cima da hora, pão de forno na mesa e presunto acabado de cortar, bacalhau e couves, sem dúvida!, vozes, risos e gargalhadas altas, uma confusão em que ninguém se deixa ouvir. Os miúdos a correr de um lado para o outro. São duas mesas grandes, porque já há muito que não cabemos todos na mesma. O Natal são pequenos papelinhos com os nomes a indicar o nosso lugar. O Natal é esperar pelo Filipe e pelo Miguel que, cambaleantes na sua alegria, chegam sempre tarde do seu corridinho de Natal às casas e amigos de Lagos – chegam normalmente a falar uma língua inebriada que só os dois primos entendem. O Natal é azevinho. O Natal é comer à pressa para apanhar a Missa do Galo.

O Natal é um peru delicioso, por vezes destronado por um Galo Capão, com um arroz de grelos único. A receita do arroz de grelos passou da minha Avó Mia para a minha Mãe. (Esse peru ou galo e esse arroz de grelos ficamos a comê-los nos dois ou três dias seguintes. Eu sou a única que não se queixa...) O Natal é uma discussão constante em torno dos pratos do serviço de Natal – quem fica com o comboio, quem fica com o cavalo, quem fica com o soldadinho ou os soldadinhos, com o trenó e, sobretudo, quem NÃO fica com a corneta! O Natal é uma mesa bem posta: toalha, pratos, copos e guardanapos a condizer. O Natal são várias cores, de preferência nos mesmos tons. O Natal é uma lareira sempre acesa, o cheiro de lenha a encher a sala e a fugir da chaminé. O Natal é frio na rua, calor em casa. O Natal é muito vinho!

O Natal é uma tentativa contínua de um plano perfeito para viciar o sorteio dos presentes, cada vez mais controlado, cada vez mais difícil de viciar. (Depois de três anos ou mais a calhar a mim e às minhas irmãs trocar os presentes entre as três, começaram a desconfiar...) O Natal são passeios à cidade, a tentar equilibrar o passo na calçada escorregadia, a correr atrás do cheiro a castanhas assadas na rua. O Natal é uma troca constante de "Bom Natal", "Boas Festas", "Feliz Natal" quando passeamos pela rua. São postais de Natal em cima da lareira. São velas grandes e encarnadas acesas durante demasiado tempo, a derreter esquecidas sobre onde não queremos. O Natal é roupa quente, uma gola alta, um gorro, luvas de lã, um cachecol bem enrolado. São presentes também. Só um para cada pessoa. Escolhido a dedo e anunciado com muita imaginação. Com muito humor também. O Natal é lembrar quem não está e quem faz falta. Ou porque foi e já não volta ou porque simplesmente não pôde estar ali. O Natal é estar à mesa e deixar as muitas histórias e recordações prolongar o almoço e o jantar. O Natal em minha casa é a cumplicidade da boa-disposição. O Natal para mim é tudo isto... Mas é também muito mais. 

(texto: © Graça Almeida Borges; fotografia© Constança Cabral)

14 comments:

  1. Este texto transportou-me à infância e fez-me reconhecer que apesar de sempre reclamar o facto dos Natais serem passados SEMPRE com a família do meu pai (e eu e a mana sempre a pedirmos para passarmos com a família da minha mãe) foram recheados de muita alegria e acompanhados de tanto do que consta neste texto!
    Parabéns Gracinha pelo texto lindo e obrigada Constança pela sua partilha.

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  2. Obrigada Constança pela partilha.
    Este texto, muito bem escrito, lembrou-me a minha infância e o meu pai, quando ainda estava cá...muito obrigada!
    Beijinho
    Teresa

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  3. Que texto maravilhoso. O Natal e' mesmo isto, esta misturada de caos organizado com felicidade por estarmos todos ali. Natais diferentes no pormenor, mas tao iguais na essencia :)

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  4. Lindo. Queria muito ver imagens disso tudo. Infelizmente os costumes do meu Natal atualmente são bem diferentes. Saudade da infância quando havia coisas do tipo. E você ficará em NZ? Bjinho

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  5. Oh.. <3 Obrigada pela partilha.
    E que aos poucos o Natal chegue aí!!

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  6. Lindo texto, fez-me recuar alguns anos. Obrigada Concha por partilhar connosco. Há coisas que no meu entender, não deveriam mudar assim tanto. Hoje em dia já não se sente o espírito do Natal tão intensamente (se calhar sou eu). Quando estive fora de Portugal, tive muitas saudades do Natal Português, ou pelo menos do meu Natal Português, mas o espírito do Natal no sítio onde estava era tão intenso, que colmatou sempre essa lacuna.

    xx

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  7. Concha, obrigada por partilhar. O texto da sua amiga está super bem escrito e revejo-me imenso nalgumas descrições. Tenho a certeza de que a Concha vai conseguir conferir à sua noite de Natal um bocadinho do que lhe está na memória. Um beijinho, filipa

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  8. O natal é ir buscar o pinheiro ao monte, a ajuda dos crescidos a por as luzes no pinheiro da entrada, e as miúdas a pôr as decorações da forma mais bonita de sempre!
    O natal, o meu natal, é escolher os doces que são vão fazer para além dos tradicionais, as rabanadas, os mexidos, o bolo rei, o pão de ló, os brigadeiros...
    É muito vinho do porto, vinho tinto, vinho, sim! (não, não são alcoólicos :P)
    São canções cantadas por todos, durante todo o dia, enquanto todo o mundo feminino da família cozinha, faz bolos e arroz de polvo (e panados de polvo), para o jantar. Faz-se o já tradicional prato alternativo para quem não aprecia o molúsculo.
    É o pão acabado de sair do forno, feito pela avó e amassado por ela e as netas, com a couve por baixo para não queimar, e bem comido com manteiga a derreter!
    São presentes (muitos, sim, para os mais novos. que lhe dão valor, mesmo em quantidade. que usam tudo, porque foi exatamente escolhido em função do que mais gostam ou necessitam) abertos à meia noite, noite fora, até "às tantas"
    Gostava de te continuar a contar o que é um belo de um natal minhoto, mas não tenho tempo para continuar aqui a escrever. É ainda assim, garanto-te, fantástico, brilhante!

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  9. Um texto maravilhoso e encantador. Adorei! :)

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  10. O mundo é ainda mais pequeno do que pensamos...
    Enquanto lia o texto da Gracinha dei comigo a rasgar um enorme sorriso... A história é deliciosa! E eu posso atestar na primeira pessoa tudo o que aqui é dito. O mundo, na sua imensidão e diversidade pode, às vezes, parecer uma aldeia. Ora... Por onde começar? Vou tentar ser breve no relato de tantas felizes coincidências. Primeiro, conheci o blog através da minha mulher. Admiração, inspiração, ou simplesmente curiosidade são alguns argumentos que a levam a "passar por aqui" com alguma regularidade. E bem! Em segundo lugar, vivemos em Lagos e somos amigos da família Almeida Borges. Na verdade, posso até revelar que o Filipe (irmão da Gracinha) é o meu melhor Amigo desde sempre.
    Outra coincidência ou curiosidade é o facto de ter nascido na Nova Zelândia, em Auckland, fruto do casamento de uma neozelandesa com um português, que se apaixonaram porém em Londres, no início dos anos 70.
    De volta ao assunto - o Filipe e a Gracinha, os irmãos, as irmãs, os primos, os pais e os tios fazem parte da minha vida desde a infância e com quem partilhei e partilho as aventuras e os grandes momentos da vida (os pequenos também!). A amizade que nos une é imensa de cumplicidade! O natal é... como a Gracinha diz "é tudo isto, mas é muito mais!" Já agora, o Filipe e o Miguel chegam sempre atrasados ao jantar de natal mas eu não tenho NADA a ver com isso! ;). No final chego à certeza de que são muito mais as razões que unem as pessoas do que aquelas que as afastam. Obrigado por partilhar o texto. Muitas felicidades!

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  11. Lindo demais esse texto, algo que sempre idelizei, até pq moro num país tropical. Gostaria muito de poder compartilhá-lo em meu blog. Será que poderia?! Abraço.

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  12. Adorei o texto, está lindo.

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  13. Maravilhoso, que texto delicioso. Adorei :)

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